Fala-se de poupança como quem fala de higiene. É um dever básico. Fala-se de investimento como se fosse a versão adulta da ambição. Quem sabe investir está a construir o futuro. Mas raramente falamos de gastar dinheiro de forma intencional. Sem culpa. Sem desperdício. Gastar parece sempre associado à leviandade. Ao impulso. À falta de disciplina. Como um erro a justificar. Só que gastar é inevitável. Um acto que molda tanto a nossa vida quanto poupar ou investir. O que (...)
Não sou feminista. Não me identifico com as barricadas, nem com os megafones, nem com a exigência de que homens e mulheres sejam iguais em tudo. Não acredito em simetrias forçadas. Somos diferentes. E há uma nobreza intrínseca nessa diferença. Há coisas que são de homens. Há coisas que são de mulheres. E essa divisão natural é uma arquitectura tão antiga quanto a própria humanidade. A diferença não nos diminui. Completa-nos. Mas o que dizer quando essa diferença (...)
Há bairros construídos em cimento e outros em pertença. O primeiro levanta-se com gruas, o segundo ergue-se em vizinhos que sabem onde estava a bicicleta encostada vinte anos antes. É aqui que surgem os do bairro e os bairristas. Duas espécies que se confundem na geografia. Não no sangue. Os bairristassão os guardiões da memória. Não precisam de mapas nem de fotografias antigas. Carregam o bairro nos gestos. Sabem onde a calçada se solta primeiro depois das chuvas. Onde (...)
Há sempre um momento em que a natureza nos apanha distraídos. Pode ser no instante em que o sol se põe. Ou naquela noite em que prometemos regressar cedo e acabamos a inventar desculpas para prolongar a estadia na areia fria da praia. A natureza tem essa habilidade. Roubar-nos o relógio e devolver-nos a vida. O mar. Não importa quantas tarefas acumulamos. Quantas notificações esperneiam no bolso. Quantas vezes repetimos que amanhã vai ser um dia puxado. Basta entrar. Basta (...)
Há um tipo de conversa que só acontece à beira-mar. Com a água a bater no tornozelo. O peso que passa de um pé para o outro. A sensação da água fria, que sobe e desce. O gesto de enterrar os calcanhares na areia até formar um buraco. A coreografia sem intenção. Enquanto falamos, vamos construindo o que a próxima onda vai desfazer. O curioso é que este vaivém do mar dita também o ritmo do discurso. As pausas coincidem com o rebentar da espuma. As frases ficam suspensas (...)
o corpo demora a perceber que já não está de serviço,
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O calendário diz que as férias começaram. Mas o corpo não ouve. Vive de hábitos. E os hábitos não se mudam com o check-out mental. O primeiro dia de férias é um território estranho. O despertador que não toca, mas acordamos cedo demais. Não por vontade, mas por reflexo. Os músculos ainda carregam a tensão de semanas. Meses de rotina. Os ombros continuam altos. As mãos movem-se rápido para preparar o pequeno-almoço. O corpo age em piloto automático, programado para (...)
Há graffitis que nos obrigam a parar. Estão em muros gastos, em prédios abandonados, em túneis esquecidos. Não passam despercebidos. São imagens que convocam o olhar. Ficam na retina. Às vezes emocionam. Outras vezes provocam. Quase sempre, têm mais a dizer do que painéis de exposições financiadas. São arte. E como qualquer arte, não pedem licença. Impõem-se. Depois há os outros. Os das letras gordas. Ilegíveis. Feitas à pressa e por cima de tudo o que já lá (...)
Foi-se o tempo em que os concertos começavam com o barulho de vozes a afinar entusiasmo e terminavam com o som do encore a ecoar no peito. Agora, começam com ecrãs acesos e terminam com vídeos tremidos, de som saturado, a ocupar espaço na galeria do telemóvel e nenhum na memória. Não é só uma questão de registar o momento. É uma compulsão de provar que se esteve lá. É o reflexo de uma plateia mais interessada em documentar do que em sentir. Gente a ver o concerto (...)
Chegámos a um ponto em que já não compramos por necessidade. Nem sequer por desejo. Compramos por reflexo. É automático. A nova colecção adiciona-se ao carrinho. O último modelo vai para o bolso. A campanha do dia impossível resistir. E assim, sem pensar, acumulamos. Temos três variações da mesma t-shirt. A branca, a cinzenta e a preta. Não há diferença entre elas. Nenhuma que mereça menção. Mas a repetição tranquiliza. Deixa-nos com a sensação de que estamos (...)
Há quem acorde com um despertador e quem acorde com um verso. O problema é quando se é os dois. Quando se tem de cumprir reuniões às nove, enviar o relatório às onze, alinhar com a equipa às quatro. E a cabeça pede tempo. Para escrever. Quando se sonha por dentro e se finge eficiência por fora. Viver com horário de executivo e alma de poetaé viver em contradição. Acordamos cedo para trabalhar, mas o melhor pensamento chega às dez da noite, quando já ninguém nos (...)