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barulho de fundo

quem tem alma não tem calma.

barulho de fundo

quem tem alma não tem calma.

07.10.25

As chaminés de Sines,

que eram mais do que as chaminés de Sines.


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Durante anos, as chaminés de Sines cresceram connosco. Firmes. Quase arrogantes. A cortar o céu como quem marca território. Eram o primeiro sinal de que estávamos a chegar. O marco que indicava que daqui para a frente é mar. Não eram bonitas num sentido romântico, mas tinham presença. Daquela que se impõem.

 

Agora, o horizonte está limpo. Limpo demais. Fica um vazio estranho, como quando alguém muda um móvel de lugar e o corpo ainda tenta desviar-se dele ao passar. As chaminés eram memória industrial. Ruído de progresso. Testemunhas de um tempo em que a força das coisas se media em toneladas e calor. Tinham uma dignidade operária. Sem verniz. Fumo. Fuligem. Ferro. Vento. E também humanidade. Por detrás delas havia turnos. O cheiro a óleo entranhado na roupa.

 

Quando caíram, caíram também as histórias que não cabem em museus. As mãos que apertaram parafusos. Os olhos que vigiaram luzes de controlo. As pausas de cigarro viradas ao mar. Tudo aquilo que constrói uma paisagem interior. Mais duradoura do que qualquer estrutura. Há quem diga que foi o progresso. Que o futuro é limpo, silencioso, digital. Pode ser.

 

Mas há uma beleza naquilo que era pesado e imperfeito. Como se a própria matéria tivesse alma. Existisse. As chaminés de Sines lembravam-nos disso. Que o homem também sabe erguer coisas concretas. Que ficam. E agora o céu está inteiro. Mas perdeu um pouco de espessura. Porque deitaram abaixo as chaminés de Sines.

 

Foi rápido, quase limpo. Uma implosão estudada. Controlada. Higiénica. Tudo o que a modernidade gosta de ser. Mas há qualquer coisa de obsceno na facilidade com que se apaga o que foi estruturante. Como se décadas de fumo, ferro e vento pudessem ser arquivadas num vídeo de drone e numa nota de imprensa sobre transição energética

 

Durante anos, as chaminés foram o código de barras do litoral alentejano. Eram o ponto fixo de quem vinha da cidade ou do mar. O farol ao contrário. Não guiavam barcos, mas diziam-nos a nós, em terra, onde terminava o mundo rural e começava o industrial. O ir de férias ou o regresso. Eram símbolo de força. Ainda que feita de carvão, vapor e suor. 

 

Não é nostalgia. É proporção. A paisagem sem as chaminés perdeu escala. Ficou rasa. Domesticada. Como se o litoral tivesse sido nivelado à régua da estética moderna. A mesma que troca fábricas por startups e chão gasto por renderizações de comunidades sustentáveis. Tudo muito bonito, mas sem textura. E o mundo sem textura é o primeiro passo para o esquecimento.

 

As chaminés não eram apenas betão e ferro. Eram a lembrança vertical de que a humanidade já produziu com as mãos. E de que houve uma época em que o trabalho não era um conceito abstracto, mas uma coisa que se via de longe. No fumo. Nas luzes. Nos tais turnos. Hoje, o trabalho já não deixa marcas no corpo nem no território. Deixa-as no ecrã.

 

E é isso que mais incomoda. A queda das chaminés de Sines simboliza mais do que o fim de uma era energética. É o apagar daquilo que nos lembra que o progresso tem um custo. Porque até o progresso se quer redimir da própria pegada. Tudo tem de ser verde, leve, inteligente. Desmaterializado. E naquelas estruturas havia uma honestidade quase brutal. O retrato cru de um tempo em que se construía primeiro e se pensava depois. Não era bonito, mas era real.

 

As chaminés de Sines não foram destruídas. Foram canceladas. Tornaram-se o equivalente arquitectónico de um tweet inconveniente. Apagado para não perturbar o feed da modernidade. Mas, ironicamente, eram elas que sabiam o que era permanecer. Ficar de pé contra ventos, mares e governos. E hoje, em que tudo muda ao toque de um dedo, o desafio era termos deixado uma delas de pé. Não por utilidade, mas por memória.

 

O futuro precisa de um lembrete do que custou chegar até ele. E um país sem cicatrizes é mais jovem, mas mais amnésico.

 

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