As flores dão-se a tempo

Será a morte o grande mistério? Acho que não. O maior mistério é a vida. E o modo como adiamos o que é essencial até já não servir de nada.
Damos flores a quem já cá não está. Escrevemos discursos para o silêncio. Acendemos velas onde já não há olhos para ver. Fazemos homenagens que chegam tarde. Lágrimas que não servem de consolo a ninguém. Talvez seja a nossa forma de aliviar a consciência. Como quem chega atrasado mas ainda tenta acreditar que o espetáculo não acabou.
Mas a maioria das flores devia ser entregue mais cedo. Enquanto a pele ainda sente o toque. Enquanto a voz ainda ouve o elogio, sem precisar de moldura. Porque, no fundo, não sabemos nada sobre o que vem depois. Talvez um escuro tranquilo. Talvez um recomeço. Talvez nada. E por isso mesmo, é aqui que tudo importa.
Não há certezas no depois. Há certezas no agora e desperdiçamo-las com uma naturalidade assustadora. Guardamos as palavras boas para um dia, os gestos simples para quando houver tempo. Mas o tempo não é um depósito de intenções. É um animal vivo, que corre à frente de nós e nunca volta atrás.
Ajudar em vida é a única forma de acreditar em alguma coisa. Não é uma questão de fé. Mas de decência. De consciência. De entender que o amor não é um ritual fúnebre, mas um acto quotidiano. Coisas pequenas, que valem mais do que cem coroas de flores bem arranjadas.
É estranho como temos medo de parecer sentimentais em vida, mas aceitamos ser trágicos na morte. Como se o luto fosse mais digno do que o afecto. Preferimos o drama à ternura, o epitáfio à conversa. Talvez porque a morte, sendo definitiva, não nos obriga à vulnerabilidade que a vida exige.
Mas devia ser ao contrário. Devíamos ser mais ousados em vida. Mais disponíveis. Mais atentos. Porque é fácil gostar de quem já partiu. Eles não falham. Não respondem mal. Não nos desiludem. Difícil é gostar de quem cá está. Com as suas imperfeições e teimosias. Com o caos e o ruído do dia-a-dia. E, no entanto, é aí que o amor se prova.
Ir ao cemitério pode ser um gesto bonito. Mas é só isso. Um gesto. Um ritual que serve a quem fica, não a quem foi. E tudo bem. Precisamos dos rituais para nos organizarmos no caos. Mas não confundamos o gesto com o essencial. Nenhuma flor no mármore substitui um abraço dado a tempo. Nenhuma vela compensa a omissão.
Há uma beleza discreta em fazer as coisas quando ainda contam. Em cuidar. Em ajudar. Em estar. Não porque um dia será tarde, mas porque agora é o único tempo garantido. No fim, não se trata de acreditar na vida depois da morte. Mas em garantir que há vida antes dela.