Guardar sem motivo é um começo
Guardar sem motivo é o primeiro passo para criar uma história que só eu saberei contar...
Já coleccionei bilhetes de concertos, borrachas com cheiro, pequenas folhas de blocos. Continuo a coleccionar conchas trazidas do mar. Pedras com formatos improváveis encontradas em caminhadas distraídas.
Mas também colecciono momentos. O que aparece. Pequenos flashes de vida que não se encaixam em lugar nenhum, mas que, por algum motivo, teimam em pedir-me abrigo. Faço isso. Sem grande método, sem planos. Só a vontade de guardar. Um fragmento de uma conversa ouvida num café. O título de um livro ao passar numa montra. Uma frase de um qualquer texto, repescada ao acaso.
Guardo sem saber porquê. Parece-me aleatório. Mas sinto que estou a criar uma colecção de coisas que, mesmo sem destino, têm o seu valor. Sementes plantadas sem saber que flor vai nascer.
Cada coisa tem o seu lugar. A sua intenção. O seu uso. Guardar sem objectivo parece perder tempo. Pelo contrário. Guardar sem motivo é uma forma silenciosa de confiar. De acreditar que aquilo que estamos a guardar, mesmo sem lógica aparente, nos está a contar alguma coisa sobre nós mesmos. Não entendemos, mas um dia vai fazer sentido.
Também guardo palavras. Muitas. Anoto como quem respira. O caderno no fundo da mala vai comigo para todo o lado. Sempre. E sempre o mesmo. Só que já não é o mesmo, de tantos que já estão preenchidos. Mas sempre iguais. Não sei escrever noutro tipo de caderno.
E nele, amontoam-se frases que ouvi na rua. Ideias para histórias que talvez nunca escreva. Pedaços de sonhos que ainda me lembro ao acordar. A memória anda ocupada. O caderno ajuda.
Não me obrigo a usar depois. Não é uma lista de tarefas. É apenas recolher o que me prende a atenção. Por instantes, que seja.
Mundo este, tão enganado. Tudo tem de servir para alguma coisa. Ser rentável. Compartilhável. Produtivo. Bahhh. Eu não. Eu guardo só porque sim. E sem perguntar para quê. Deixa ficar. É o meu pequeno luxo. A minha resistência. Lembra-me de que nem tudo precisa de uma explicação imediata. Algumas coisas simplesmente são. E o aparentemente inútil revela-se quase sempre essencial. Aquilo que hoje não faz sentido, amanhã é um mapa.
Coleccionar o que nos chama à atenção é uma forma de nos situarmos. Sairmos do modo automático. Porque construimos um museu muito pessoal. Pedaços de mundo que ontem guardámos e hoje nos sussurram alguma coisa que ainda estamos a aprender a ouvir.