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barulho de fundo

quem tem alma não tem calma.

barulho de fundo

quem tem alma não tem calma.

04.07.25

Primos,

os primeiros amigos


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Uma relação que raramente é celebrada como devia. Passa despercebida nos discursos de aniversário, nas dedicatórias dos livros e nas fotografias de moldura. Não é feita de amor romântico, nem é tão solene quanto com os irmãos. Mas é o primeiro laço fora do núcleo apertado de casa. Primos.

 

Os primos são a primeira experiência de comunidade. Uma espécie de mini sociedade onde se aprende tudo em bruto. A partilhar brinquedos, a resolver discussões sem adultos por perto, a fazer alianças contra irmãos mais novos ou mais velhos. São, quase sempre, os primeiros amigos que não moram connosco. O que já os torna especiais.

 

Quem teve a sorte de crescer rodeado de primos sabe do que falo. As férias em casa dos avós. As tardes que começavam com um jogo de tabuleiro e terminavam em discussões acesas sobre quem roubou o peão azul. Os Verões em que éramos um bando. Desorganizado. Barulhento. Cheio de arranhões nos joelhos e os corações inteiros.

 

Não havia necessidade de criar memórias, elas simplesmente aconteciam. No banco de trás do carro, no armazém da fruta, na luta pelo melhor colchão no chão da sala. A infância com primos tem uma leveza que mais tarde se torna calor no peito. Um sorriso que vem antes das lembranças.

 

Mas os primos não são só infância. São também faróis na idade adulta. Companheiros silenciosos nas perdas familiares. Cúmplices discretos nos almoços grandes. São os únicos amigos que conhecem as histórias antes de serem contadas, porque também estavam lá. 

 

A relação com os primos pode adormecer durante anos. E está tudo bem na mesma. Os caminhos divergem, as cidades afastam, os filhos nascem em ritmos diferentes. Mas basta um reencontro para activar tudo. As piadas, as memórias, os avós. Há qualquer coisa de intocável nesse tipo de ligação. Uma continuidade afectiva que resiste à distância e às mudanças.

 

Ter primos é ter testemunhas da nossa versão mais crua. Aquela de quando ainda não sabíamos mentir. Quando chorávamos sem vergonha. Eles viram o nosso início e continuam, por alguma razão, a olhar por nós com esse filtro afectuoso de quem viu o começo.

 

É claro que nem todos têm essa sorte. Há primos que são apenas nomes no Natal ou seguidores no Instagram. Mas mesmo aí, nos laços frouxos, há uma possibilidade. Às vezes basta um funeral, uma fotografia antiga, um lembras-te disto? para abrir a porta esquecida e reencontrar o que julgávamos perdido.

 

Tenho filhos. Quero muito dar-lhes este privilégio. Não ocupar todos os minutos com explicações e horários. Deixar que tenham primos com quem possam aborrecer-se. Discutir. Inventar. Crescer juntos no caos saudável da liberdade. Dar-lhes a hipótese de daqui a vinte ou trinta anos terem tantas e boas recordações.

 

Porque os primos são isso. Um lugar de onde vimos e para onde podemos sempre voltar. Mesmo que seja só numa conversa. Mesmo que seja só dentro da memória. É uma herança sem herdeiros, mas com histórias para sempre.