Quando for grande quero ser leitora

Quando eu era criança, perguntavam-me o que queria ser quando crescesse. Houve uma fase em que disse astronauta. Outra em que quis ser mãe de sete filhos. E também houve o momento em que considerei seriamente ser patinadora. Mas havia uma resposta que nunca dei. Achava que não era legítima. Quando for grande quero ser leitora.
Não quero ser escritora, nem professora, não quero ser editora. Só ler. Ler como se lê um pão quente. Como se bebe água quando se tem sede. Como se respira. Ler oito horas por dia, com pausas estratégicas para o café, o alongamento das pernas e o exercício democrático da contemplação.
O problema é que vivemos numa sociedade que só considera trabalho aquilo que produz mercadoria imediata. Escrever pode ser trabalho, porque gera livros. Ensinar pode ser trabalho, porque gera certificados. Vender pode ser trabalho, porque gera dinheiro em caixa. Mas ler? Ler é passatempo. Um privilégio de quem tem muito tempo livre. Uma espécie de ócio indulgente. Apenas tolerado se couber nas horas mortas.
E é aqui está a perversão. Se não fosse quem lê, não existiria quem escreve. Se não fosse quem lê, não se sustentava uma indústria editorial. Não se alimentava o pensamento crítico. Não se preservava a memória do mundo. Se não fosse quem lê, a própria democracia ficaria cega e muda. Ainda assim, ler continua a ser uma actividade invisível. Não remunerada. Não institucionalizada.
Eu proponho o contrário. Que ler seja reconhecido como profissão. Que haja contratos colectivos de leitura. Tabelas salariais. Sindicatos de leitores. Que se crie um estatuto oficial do Leitor Profissional, com carteira assinada, direito a férias e subsídio de refeição. Afinal, quem lê está a trabalhar para o património comum. Está a testar ideias. A cruzar referências. A desmontar narrativas. A fertilizar a imaginação colectiva.
Imagine-se o que seria um país onde existissem bolsas públicas para cidadãos cujo ofício fosse ler. Onde as empresas contratariam leitores em regime de consultoria. Não para resumir relatórios, mas para assegurar que as suas decisões não se esgotam no curto prazo. Onde o Ministério da Saúde recomendaria Três capítulos por dia como prevenção de patologias da pressa.
E por que não? Há bailarinos pagos para ensaiar. Atletas pagos para treinar. Músicos pagos para praticar escalas. Todos eles são profissionais porque a sua actividade exige dedicação integral. Ler também exige. Quem já tentou atravessar Proust, Joyce ou Clarice Lispector depois de um dia de trabalho sabe que ler não é um passatempo. É uma maratona. E maratonistas não correm apenas aos domingos à tarde.
Quando digo que quando for grande quero ler, não estou a pedir um privilégio. Estou a reivindicar uma redistribuição radical de tempo e valor. Se todos tivéssemos uma quota diária de leitura paga, reconhecida e garantida, talvez a sociedade fosse menos superficial, menos imediatista, menos vulnerável ao cor-de-rosa. Talvez o nosso vocabulário solidificasse, bem como a nossa capacidade de pensar em camadas, de elaborar alternativas, de questionar verdades.
A democracia não precisa apenas de eleitores. Precisa de leitores. Pessoas que lêem de forma profissional, sistemática e não apenas por hobby, são pessoas que resistem. Que se protegem contra o facilitismo. Que sabem identificar soluções embaladas em glitter mas ocas por dentro.
Portanto, se alguém ainda me perguntar o que quero ser quando crescer, não hesitarei. Quero ser leitora. Com carteira profissional, direito a subsídio e uma reforma digna ao fim de quarenta anos de livros. Quero que me paguem para ler como se paga a quem traduz. A quem cura. Ou a quem constrói. Porque no fundo, ler também é construir. Construir densidade e lucidez.
Até lá, continuarei a ler às escondidas. Como quem comete um pecado leve. Mas guardo este desejo intacto. Que um dia, ser leitora não seja apenas um sonho infantil disfarçado de fantasia. Mas uma profissão tão legítima quanto qualquer outra. Quando for grande quero ler. E quero que me paguem por isso.