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barulho de fundo

quem tem alma não tem calma.

barulho de fundo

quem tem alma não tem calma.

17.06.25

O silêncio quando fecham a porta,

o ex libris doméstico


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Há um silêncio cheio vestígios. De migalhas na bancada, camas ainda por fazer, portas dos armários entreabertas.

É o silêncio que se instala em casa depois de todos saírem. Um dos estados mais prazerosos, mas mais subestimados da existência doméstica.

 

Mas há ali um intervalo. Ainda não nos habituámos ao silêncio, mas já não há barulho. É uma zona neutra, como o espaço entre dois andares num elevador que parou a meio. O silêncio que se segue não é de ausência, mas de restituição. Os móveis recuperam a sua geometria. O chão fica deserto. E o tempo volta a fluir normalmente.

 

É neste silêncio que temos a oportunidade de tirar o máximo partido de casa. Mas geralmente estragamos tudo. Temos tendência a contornar. A enchê-lo com televisões ligadas, música de fundo, redes sociais e ruído alheio. Qualquer coisa que o cale. Como se o silêncio denunciasse a falta de companhia. Como se fosse o parente pobre da vida doméstica.

 

Pelo contrário, é o seu ex libris. É quando a casa respira. Quando nós respiramos. Um intervalo deste ruído visual, sonoro, informativo, que nos interrompe em permanência. Estímulos que nos empurram, sobretudo em casa. Vivemos colados uns aos outros, separados de nós. E o silêncio é uma necessidade fisiológica que nos restaura.

 

É claro que o ruído volta. E é bom que volte. A porta vai voltar a abrir-se. A bola de futebol vai novamente cair ao chão. As vozes vão atravessar a casa. O jantar vai ser pedido com urgência. A rotina vai retomar o seu lugar. Porque a vida, com todos dentro, é ruidosa por natureza. Mas podemos passar por um intervalo. E isso muda tudo. Um silêncio que nos chega cru. Sem o eco de ninguém.

 

Também há dias em que é incómodo. Não chega com leveza. Aqueles dias em que tudo o que estava escondido debaixo do tapete começa a sair. E o silêncio não tem decibéis para disfarçar o que falta e o que sobra. Ao calar o mundo, começamos a amplificar-nos a nós. E isso nem sempre tem a suavidade do que é reconfortante. É por isso que o silêncio tem má fama. Porque exige precisamente isso: nada.

 

Mas também é aí que ganha pontos e deixa de ser hostil. Começa a ganhar forma. Respiração própria. Espaço. E, felizmente, quando a porta se fecha, voltamos a entrar em casa. 

 

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