Refugiados,
quem são quando deixamos de os ver como vítimas.

Há um erro recorrente na forma como falamos de refugiados. O de os tratarmos exclusivamente como vítimas. Sempre com o mesmo enquadramento. Fuga. Barcos. Tendas. Desespero. Um retrato com utilidade mediática, mas redutor. Congela pessoas complexas num instante de fragilidade. E pior. Esgota rapidamente a empatia pública. Quando alguém é apenas um problema, a tendência é querer afastá-lo.
Os refugiados não são pessoas a quem lhes falta algo. São pessoas que transportam recursos intangíveis. Ao contrário do que parece, não chegam vazias. Chegam com bagagem. Línguas adicionais. Códigos culturais. Redes de sobrevivência. Uma capacidade de adaptação extrema. Num mundo em que tanto se fala de resiliência, ignoramos a maior fonte viva dessa competência.
Se olharmos para a história, os fluxos de refugiados não foram apenas crise. Foram também motores de inovação. A fuga dos judeus moldou a ciência e a economia modernas. Os protestantes franceses impulsionaram a relojoaria suíça e a indústria têxtil inglesa. O exílio espanhol, após a guerra civil, originou intelectuais que reconfiguraram universidades na América Latina. A fuga é também difusão. Mas a narrativa que hoje circula parece alérgica a esta perspectiva.
Mais um ponto a acrescentar. O estatuto de refugiado é temporário. Não é uma identidade. É uma condição. No entanto, a burocracia e os media fixam esse rótulo como vitalício. É por isso que continuamos a falar dos refugiados sírios, afegãos, ucranianos. Como categorias permanentes. Daqui a duas gerações, talvez esses refugiados sejam apenas empresários, artistas, vizinhos ou políticos do país de acolhimento. O termo dissolve-se, mas dificilmente admitimos essa transitoriedade no presente.
Uma ironia. Os países que mais se defendem da chegada de refugiados são os que já exportaram os seus próprios refugiados em massa. Portugal enviou centenas de milhares de pessoas para França, Luxemburgo, Alemanha, Venezuela. Muitos desses emigrantes não fugiam de bombas. Mas da pobreza. Da ditadura. Da falta de perspectivas. A fronteira entre migrante económico e refugiado político é mais porosa do que nos conforta admitir. Se trocarmos o contexto, não é difícil imaginar-nos na mesma posição.
E os refugiados não representam um peso insustentável. Os números oficiais da ONU mostram que 76% permanecem em países vizinhos das zonas de conflito, maioritariamente países pobres. A Europa, que tantas vezes se diz invadida, recebe uma fracção. A percepção pública está muitas vezes desajustada da escala real. A palavra refugiado pesa mais do que os dados que lhe correspondem.
A mudança está em retirar os refugiados da categoria de excepção. Não se trata de negar a urgência humanitária, mas de recusar a ideia de que a sua condição os define para sempre. Significa começar a olhá-los como parte de projecto, não apenas de socorro. Deixar de pensar só em campos e alojamentos provisórios e começar a planear mecanismos de integração que aproveitem, de facto, o que trazem.
Deixemos de falar dos refugiados como um dossier e passemos a encará-los como futuros cidadãos. Enquanto insistirmos no primeiro enquadramento, ficaremos sempre presos a imagens de barcos e cercas. Quando passamos a olhar pelo segundo ângulo, percebemos que não é apenas uma questão de acolher,. Mas também aprender a receber.