Gostamos do que está feito. O objectivo cumprido. Ir riscando a lista. O troféu do fazer-fazer. Há uma obsessão por chegar. Por concluir. Por estar lá. Mas o lá tem um problema. Costuma durar pouco. É o golo final do café, aquele que prometia o sabor perfeito, mas que já vem frio. É a fotografia tirada depois de meses e que não diz nada sobre o vazio de ter atingido o resultado. É a meta atingida. A casa decorada. O amor oficial. O láé o fim. E o fim, por mais (...)
Espreitar deixou de ser um acto furtivo. É uma rotina social. Não é preciso um buraco na parede nem cortinados mal fechados. Basta deslizar o dedo no ecrã. O voyeurismo já não é um desvio. É um exercício quotidiano com selo de normalidade. O curioso é que o condenamos em teoria. É feio admitirmos que gostamos de espreitar. Mas na prática fazemos dele um hábito tão banal quanto beber um café. Porque espreitamos? A resposta é menos romântica do que gostaríamos. (...)
Temos pressa de tudo. Pressa de sair de casa. De chegar ao trabalho. Responder ao e-mail. Acabar a reunião. Almoçar. Pagar a conta. Regressar. Pressa de fazer. De concluir. Estamos sempre a funcionar como se houvesse um cronómetro a marcar-nos os segundos. E a sensação é sempre a mesma. Já estamos atrasados. Só que, na maior parte das vezes, não estamos. É apenas uma ilusão. Repetida tantas vezes que passámos a acreditar nela. A pressa tornou-se vício. Um reflexo (...)
Setembro é aquele mês que entra de rompante. Como se alguém abrisse as janelas de manhã e decidisse que já chega de ar abafado. Não é bem um começo. Também não é um fim. É aquele intervalo em que se percebe que não dá para continuar em piloto automático. A rotina regressa. Há que fazer ajustes. Adoro recomeços. Mas não aqueles cheios de promessas desmedidas. Adoro os recomeços domésticos. Os mais silenciosos. Abrir o armário e decidir que metade da roupa já (...)
Não sou feminista. Não me identifico com as barricadas, nem com os megafones, nem com a exigência de que homens e mulheres sejam iguais em tudo. Não acredito em simetrias forçadas. Somos diferentes. E há uma nobreza intrínseca nessa diferença. Há coisas que são de homens. Há coisas que são de mulheres. E essa divisão natural é uma arquitectura tão antiga quanto a própria humanidade. A diferença não nos diminui. Completa-nos. Mas o que dizer quando essa diferença (...)
Há bairros construídos em cimento e outros em pertença. O primeiro levanta-se com gruas, o segundo ergue-se em vizinhos que sabem onde estava a bicicleta encostada vinte anos antes. É aqui que surgem os do bairro e os bairristas. Duas espécies que se confundem na geografia. Não no sangue. Os bairristassão os guardiões da memória. Não precisam de mapas nem de fotografias antigas. Carregam o bairro nos gestos. Sabem onde a calçada se solta primeiro depois das chuvas. Onde (...)
Há sempre um momento em que a natureza nos apanha distraídos. Pode ser no instante em que o sol se põe. Ou naquela noite em que prometemos regressar cedo e acabamos a inventar desculpas para prolongar a estadia na areia fria da praia. A natureza tem essa habilidade. Roubar-nos o relógio e devolver-nos a vida. O mar. Não importa quantas tarefas acumulamos. Quantas notificações esperneiam no bolso. Quantas vezes repetimos que amanhã vai ser um dia puxado. Basta entrar. Basta (...)
Liberdade não é dizer palavrões. Nem berrar debaixo de água. Também não é um privilégio reservado a quem pode pagar viagens para parte incerta. Liberdade é um exercício de geometria. A capacidade de desenhar o próprio espaço. Sem calcular reacções. Nem antecipar o juízo colectivo. Achar que a liberdade é a ausência total de limites é um mal entendido. Nós não vivemos em vácuo. Há leis. Outras pessoas. Circunstâncias. O que define a liberdade não é a (...)
Este Verão os meus filhos não vão aprender chinês. Nem vão construir robôs. Nem fazer compostagem. Não vão para campos de férias. Nem para nada que tenha início às 9h e fim às 18h00, com lanche incluído. Este verão os meus filhos vão estar no mesmo sítio. O tempo todo. Vão acordar tarde demais e às vezes cedo demais. Ficar horas a olhar para o chão. Inventar jogos que só eles percebem. Reclamar do calor. Esconder-se no silêncio. Disputar o sofá. Vão querer ir (...)
Nunca vou ao hospital público. Não por desconfiança, mas por circunstância. Esta semana estive parte do dia num. Senti-me diante de um universo que funciona com uma lógica própria, difícil de entender de fora. É como entrar numa cidade em miniatura, onde tudo é urgente, mas nada pode ser apressado. Onde há pressa, mas também uma paciência incrivelmente sagrada. Aos hospitais públicos chegam os casos mais graves. Para onde são encaminhados os doentes que precisam de (...)