Será a morte o grande mistério? Acho que não. O maior mistério é a vida. E o modo como adiamos o que é essencial até já não servir de nada. Damos flores a quem já cá não está. Escrevemos discursos para o silêncio. Acendemos velas onde já não há olhos para ver. Fazemos homenagens que chegam tarde. Lágrimas que não servem de consolo a ninguém. Talvez seja a nossa forma de aliviar a consciência. Como quem chega atrasado mas ainda tenta acreditar que o espetáculo (...)
É melhor do que nada. Uma frase que parece inofensiva, mas que é uma pequena armadilha de resignação. Soa prática. Madura. Sensata. Mas o disfarce é controverso. Por trás dela vive uma cultura de aceitação do mínimo. O elogio do pouco. O aplauso ao quase. A normalização da mediocridade disfarçada de gratidão. Aprendemos a dizer É melhor do que nadaquando o dinheiro não chega. Quando o amor não preenche. Quando o tempo livre é escasso. Quando a amizade é morna. (...)
No chão de fábrica, os gráficos não sobem nem descem. Vibram. Rangem. Emperram. A maior universidade não tem cátedras nem aulas magnas. Tem ruído. Tem cheiro. Tem ritmo. É feita de pausas curtas. Improvisos discretos. Olhares rápidos, sem palavras, entre quem percebe que a linha vai parar se ninguém fizer nada. Quem nunca passou horas no chão de fábrica é como um médico que nunca ouviu o som real da respiração. A teoria ensina Anatomia. O chãoensina o corpo vivo. (...)
Há um equívoco persistente na forma como vivemos as conversas. Acreditamos que os outros nos estão a ver. Falamos. Sorrimos. Gesticulamos. Há sempre uma pequena câmara acesa. Uma espécie de vigilância interior a avaliar o que o outro estará a reparar. Mas a verdade é que, na maioria das vezes, o outro não vê o que pensamos que ele vê. Pior. Ele vê-se a si próprio. Raramente nos está a ver a nós. Vê o reflexo de si próprio através de nós. Uma espécie de eco do seu esta (...)
Vivemos a prazo. Não a longo. O outro, o curto. O imediatista. O que promete alívio instantâneo e esquecimento rápido. Vivemos a curto prazo. E o curto prazo é o café da manhã da alma moderna. Desperta. Resolve. Mas não alimenta. Aprendemos a funcionar em agoras. A comprar porque sim, a desistir porque não. E não é sempre defeito. Às vezes é a única forma de não enlouquecermos num mundo que pede check-lists para sentimentos e prazos para o entusiasmo. Pensar a (...)
Portugal. Proibição ou não do uso da burca em espaços públicos. Não sabemos lidar com o que não conseguimos decifrar à primeira vista. Rosto. Intenções. Silêncios. Somos um povo que precisa de ver a cara do outro para medir o tom de voz, a ironia e o perigo. Neste contexto, a burca é uma afronta cultural. O incómodo do não dito em praça pública. Existe uma contradição. E como todas as contradições, revela mais sobre nós do que sobre quem a usa. Queremos viver (...)
Achamos que somos livres com a mesma ligeireza que dizemos que está sol lá fora. Mas se virmos bem, poucos o são. A maioria apenas trocou as grades visíveis por outras mais subtis. O medo do julgamento. O olhar dos outros. A obrigação social de parecer equilibrado. Produtivo. Interessante. É um cativeiro com luz natural e Wi-Fi. Liberdade não é viver sem regras. É escolher as nossas. É negar sem dar explicações e aceitar sem justificar entusiasmo. É não ter receio de (...)
Tem má fama. A palavra discriminação. É dita com as mesmas rugas na testa quando se fala de injustiça, corrupção ou guerra. Mas o verbo discriminar, no dicionário, não nasceu vil. Originalmente, significava distinguir, separar com critério. A natureza discrimina a flor que só abre à luz certa e o corpo rejeita o que lhe é tóxico. O problema começou quando trocámos o critério pela conveniência e o instinto pela convenção. Hoje, discriminamos com a mesma (...)
Gostamos do que está feito. O objectivo cumprido. Ir riscando a lista. O troféu do fazer-fazer. Há uma obsessão por chegar. Por concluir. Por estar lá. Mas o lá tem um problema. Costuma durar pouco. É o golo final do café, aquele que prometia o sabor perfeito, mas que já vem frio. É a fotografia tirada depois de meses e que não diz nada sobre o vazio de ter atingido o resultado. É a meta atingida. A casa decorada. O amor oficial. O láé o fim. E o fim, por mais (...)
Há quem confunda tacto com omissão. Acha que ser cuidadoso é falar pouco. Esconder. Cortar pela metade. Como se a verdade fosse um bisturi e o silêncio, um penso rápido. Mas é o contrário. Poupar na realidade é empobrecer as relações. O que fere não é a verdade. É a forma como a atiramos. Explicar é respeito. É o meio-termo entre o silêncio amedrontado e a franqueza em bruto. Andamos a fazer economia emocional. Como se cada conversa fosse uma factura. Mas o que (...)