Uma relação que raramente é celebrada como devia. Passa despercebida nos discursos de aniversário, nas dedicatórias dos livros e nas fotografias de moldura. Não é feita de amor romântico, nem é tão solene quanto com os irmãos. Mas é o primeiro laço fora do núcleo apertado de casa. Primos. Os primos são a primeira experiência de comunidade. Uma espécie de mini sociedade onde se aprende tudo em bruto. A partilhar brinquedos, a resolver discussões sem adultos por (...)
Currículo com data de validade. Há uma fase na vida em que a experiência deixa de ser valorizada e começa a ser tolerada. Acontece por volta dos 45. Para alguns, mais cedo. Para outros, nem tanto. Mas o padrão é claro: chega um momento em que o mercado de trabalho olha para profissionais experientes e já não vê um activo. Vê um risco. Não é uma exclusão declarada. Ninguém diz Já tem demasiados anos. Mas sente-se. No silêncio que começa a crescer em volta de quem, (...)
Eles querem tudo agora. Não é figura de estilo. É factual. Querem emprego antes da experiência, salário antes do esforço, resultados antes do processo. Cresceram com o swipe e o like como medidas de resposta. O tempo que demora a carregar um vídeo já é impaciência. Demorar a perceber uma tarefa soa a tortura. Falar em dez anos de carreira parece-lhes uma vida inteira. Não estão dispostos a sacrificar a vida pelo trabalho. Querem tempo para viver. Tempo para desligar. E (...)
Há um silêncio cheio vestígios. De migalhas na bancada, camas ainda por fazer, portas dos armários entreabertas. É o silêncio que se instala em casa depois de todos saírem. Um dos estados mais prazerosos, mas mais subestimados da existência doméstica. Mas há ali um intervalo. Ainda não nos habituámos ao silêncio, mas já não há barulho. É uma zona neutra, como o espaço entre dois andares num elevador que parou a meio. O silêncio que se segue não é de ausência, (...)
Chegam ao final do ano letivo como quem chega ao fim de uma maratona feita de olhos vendados. Exaustos, desorientados, e sem grande noção do caminho que percorreram. Passaram. Com esforço e boas notas. Um para o 7.º, outro para o 10.º ano. Sendo que, este último, ainda tem de decorar mais umas páginas, fazer os exames nacionais. Depois sim, pode descansar. Mas descansar de quê? De um modelo que ainda funciona em modo fábrica, como se os miúdos fossem peças de um processo (...)
A memória não é um baú onde guardamos lembranças intactas. É uma oficina. Cada peça do passado vai-se moldando de acordo com o presente. E por mais que gostemos de acreditar que a nossa história é consistente, a verdade é que a memória faz e refaz tudo aquilo que vivemos. Ao longo do tempo, apercebemo-nos de que afinal não nos lembramos das coisas de forma exacta. Lembramo-nos da sensação, do tom de voz, de um detalhe. O resto, vamos preenchendo com o que temos à mão (...)
Tenho sérios problemas de falta de espaço. Quase todos temos. Não me refiro a tempo, nem disponibilidade ou clareza. Embora esses também falhem com frequência. Refiro-me a espaço físico. Matéria concreta. São as paredes que se estreitam. As gavetas que já não fecham. As estantes em colapso. Chão que já não se vê. Há um limite real para aquilo que conseguimos acumular. E eu cheguei a esse limite. Será um problema doméstico ou uma questão estrutural? Os espaços (...)
É inquietante quando um miúdo de 10 anos pede para ficar em casa num sábado à tarde, em vez de ir para a rua. Não porque esteja cansado, ou adoentado, mas porque não sabe o que fazer fora de casa. A rua é um espaço de liberdade e caos criativo. Tornou-se um lugar estranho. As crianças estão mais gordas, sim. Mas mais do que isso: estão pesadas. O peso de um corpo que não se mexe é diferente do de um corpo forte. Arrastam-se. Porque temos uma geração que não aprendeu a (...)
Apesar de viver no campo profundo, o primeiro som que oiço ao acordar não é o canto dos pássaros, nem o murmúrio da bicharada a espreguiçar-se devagar. É um grito mecânico, seco, insistente. O som do despertador, sempre demasiado alto. Sempre antes de tempo. Inoportuno. Quase invisível na mesa de cabeceira, mas que ocupa um lugar central nos meus dias. O despertador é mais do que um alarme. É carcereiro. Vigilância disfarçada de rotina. Um lembrete cruel de que não (...)
Não é preciso pensar. Basta ir. Entrar. Dar um mergulho no mar é a resposta ao excesso. De calor, de ruído, de tensão. Água fria. O corpo não quer. Mas há dias em que isso não interessa. Dias em que tudo está colado. Pesa sem ter nome. A água fria entra. Nunca entra com cuidado. Entra como um murro. A pele arrepia, a respiração falha, o impulso é sair. Mas se aguentarmos, só mais um bocadinho, acontece qualquer coisa. Primeiro no corpo. O primeiro impacto é sempre o (...)