Será a morte o grande mistério? Acho que não. O maior mistério é a vida. E o modo como adiamos o que é essencial até já não servir de nada. Damos flores a quem já cá não está. Escrevemos discursos para o silêncio. Acendemos velas onde já não há olhos para ver. Fazemos homenagens que chegam tarde. Lágrimas que não servem de consolo a ninguém. Talvez seja a nossa forma de aliviar a consciência. Como quem chega atrasado mas ainda tenta acreditar que o espetáculo (...)
A palavra é de prata e o silêncio é de ouro. Repetimos esta frase como quem cita um provérbio antigo, sem grande atenção ao que ela exige de nós. Mas, se pararmos para pensar, talvez o ouro não esteja no silêncio em si, mas no espaço que ele cria. Vivemos num tempo em que tudo fala. As notificações piscam. As vozes opinam. Os podcasts analisam. Os vídeos explicam. A palavra deixou de ser prata. Alumínio, talvez. Leve. Descartável. Reciclada até à exaustão. Fala-se (...)
É melhor do que nada. Uma frase que parece inofensiva, mas que é uma pequena armadilha de resignação. Soa prática. Madura. Sensata. Mas o disfarce é controverso. Por trás dela vive uma cultura de aceitação do mínimo. O elogio do pouco. O aplauso ao quase. A normalização da mediocridade disfarçada de gratidão. Aprendemos a dizer É melhor do que nadaquando o dinheiro não chega. Quando o amor não preenche. Quando o tempo livre é escasso. Quando a amizade é morna. (...)
No chão de fábrica, os gráficos não sobem nem descem. Vibram. Rangem. Emperram. A maior universidade não tem cátedras nem aulas magnas. Tem ruído. Tem cheiro. Tem ritmo. É feita de pausas curtas. Improvisos discretos. Olhares rápidos, sem palavras, entre quem percebe que a linha vai parar se ninguém fizer nada. Quem nunca passou horas no chão de fábrica é como um médico que nunca ouviu o som real da respiração. A teoria ensina Anatomia. O chãoensina o corpo vivo. (...)
Há um equívoco persistente na forma como vivemos as conversas. Acreditamos que os outros nos estão a ver. Falamos. Sorrimos. Gesticulamos. Há sempre uma pequena câmara acesa. Uma espécie de vigilância interior a avaliar o que o outro estará a reparar. Mas a verdade é que, na maioria das vezes, o outro não vê o que pensamos que ele vê. Pior. Ele vê-se a si próprio. Raramente nos está a ver a nós. Vê o reflexo de si próprio através de nós. Uma espécie de eco do seu esta (...)
Vivemos a prazo. Não a longo. O outro, o curto. O imediatista. O que promete alívio instantâneo e esquecimento rápido. Vivemos a curto prazo. E o curto prazo é o café da manhã da alma moderna. Desperta. Resolve. Mas não alimenta. Aprendemos a funcionar em agoras. A comprar porque sim, a desistir porque não. E não é sempre defeito. Às vezes é a única forma de não enlouquecermos num mundo que pede check-lists para sentimentos e prazos para o entusiasmo. Pensar a (...)
Portugal. Proibição ou não do uso da burca em espaços públicos. Não sabemos lidar com o que não conseguimos decifrar à primeira vista. Rosto. Intenções. Silêncios. Somos um povo que precisa de ver a cara do outro para medir o tom de voz, a ironia e o perigo. Neste contexto, a burca é uma afronta cultural. O incómodo do não dito em praça pública. Existe uma contradição. E como todas as contradições, revela mais sobre nós do que sobre quem a usa. Queremos viver (...)
Achamos que somos livres com a mesma ligeireza que dizemos que está sol lá fora. Mas se virmos bem, poucos o são. A maioria apenas trocou as grades visíveis por outras mais subtis. O medo do julgamento. O olhar dos outros. A obrigação social de parecer equilibrado. Produtivo. Interessante. É um cativeiro com luz natural e Wi-Fi. Liberdade não é viver sem regras. É escolher as nossas. É negar sem dar explicações e aceitar sem justificar entusiasmo. É não ter receio de (...)
Tem má fama. A palavra discriminação. É dita com as mesmas rugas na testa quando se fala de injustiça, corrupção ou guerra. Mas o verbo discriminar, no dicionário, não nasceu vil. Originalmente, significava distinguir, separar com critério. A natureza discrimina a flor que só abre à luz certa e o corpo rejeita o que lhe é tóxico. O problema começou quando trocámos o critério pela conveniência e o instinto pela convenção. Hoje, discriminamos com a mesma (...)
Gostamos do que está feito. O objectivo cumprido. Ir riscando a lista. O troféu do fazer-fazer. Há uma obsessão por chegar. Por concluir. Por estar lá. Mas o lá tem um problema. Costuma durar pouco. É o golo final do café, aquele que prometia o sabor perfeito, mas que já vem frio. É a fotografia tirada depois de meses e que não diz nada sobre o vazio de ter atingido o resultado. É a meta atingida. A casa decorada. O amor oficial. O láé o fim. E o fim, por mais (...)