Será a morte o grande mistério? Acho que não. O maior mistério é a vida. E o modo como adiamos o que é essencial até já não servir de nada. Damos flores a quem já cá não está. Escrevemos discursos para o silêncio. Acendemos velas onde já não há olhos para ver. Fazemos homenagens que chegam tarde. Lágrimas que não servem de consolo a ninguém. Talvez seja a nossa forma de aliviar a consciência. Como quem chega atrasado mas ainda tenta acreditar que o espetáculo (...)
É melhor do que nada. Uma frase que parece inofensiva, mas que é uma pequena armadilha de resignação. Soa prática. Madura. Sensata. Mas o disfarce é controverso. Por trás dela vive uma cultura de aceitação do mínimo. O elogio do pouco. O aplauso ao quase. A normalização da mediocridade disfarçada de gratidão. Aprendemos a dizer É melhor do que nadaquando o dinheiro não chega. Quando o amor não preenche. Quando o tempo livre é escasso. Quando a amizade é morna. (...)
Vivemos a prazo. Não a longo. O outro, o curto. O imediatista. O que promete alívio instantâneo e esquecimento rápido. Vivemos a curto prazo. E o curto prazo é o café da manhã da alma moderna. Desperta. Resolve. Mas não alimenta. Aprendemos a funcionar em agoras. A comprar porque sim, a desistir porque não. E não é sempre defeito. Às vezes é a única forma de não enlouquecermos num mundo que pede check-lists para sentimentos e prazos para o entusiasmo. Pensar a (...)
Achamos que somos livres com a mesma ligeireza que dizemos que está sol lá fora. Mas se virmos bem, poucos o são. A maioria apenas trocou as grades visíveis por outras mais subtis. O medo do julgamento. O olhar dos outros. A obrigação social de parecer equilibrado. Produtivo. Interessante. É um cativeiro com luz natural e Wi-Fi. Liberdade não é viver sem regras. É escolher as nossas. É negar sem dar explicações e aceitar sem justificar entusiasmo. É não ter receio de (...)
Tem má fama. A palavra discriminação. É dita com as mesmas rugas na testa quando se fala de injustiça, corrupção ou guerra. Mas o verbo discriminar, no dicionário, não nasceu vil. Originalmente, significava distinguir, separar com critério. A natureza discrimina a flor que só abre à luz certa e o corpo rejeita o que lhe é tóxico. O problema começou quando trocámos o critério pela conveniência e o instinto pela convenção. Hoje, discriminamos com a mesma (...)
Gostamos do que está feito. O objectivo cumprido. Ir riscando a lista. O troféu do fazer-fazer. Há uma obsessão por chegar. Por concluir. Por estar lá. Mas o lá tem um problema. Costuma durar pouco. É o golo final do café, aquele que prometia o sabor perfeito, mas que já vem frio. É a fotografia tirada depois de meses e que não diz nada sobre o vazio de ter atingido o resultado. É a meta atingida. A casa decorada. O amor oficial. O láé o fim. E o fim, por mais (...)
Há quem confunda tacto com omissão. Acha que ser cuidadoso é falar pouco. Esconder. Cortar pela metade. Como se a verdade fosse um bisturi e o silêncio, um penso rápido. Mas é o contrário. Poupar na realidade é empobrecer as relações. O que fere não é a verdade. É a forma como a atiramos. Explicar é respeito. É o meio-termo entre o silêncio amedrontado e a franqueza em bruto. Andamos a fazer economia emocional. Como se cada conversa fosse uma factura. Mas o que (...)
Há uma espécie de lei que rege as relações humanas. Se deixas de aparecer, deixas de existir no mapa mental dos outros. Não é maldade. Nem conspiração. É geometria. Quem não ocupa espaço, perde forma. No início, estranha-se. Na semana seguinte, repete-se a ausência. Na terceira, já ninguém pergunta. Não porque não gostem de nós, mas porque a vida preenche os vazios com outras presenças. É como numa mesa posta, se um lugar fica vazio, ao fim de algum tempo já (...)
Ainda é Setembro. As ruas ainda cheiram a férias interrompidas. As mochilas ainda rangem de novo. O calor durante o dia insiste em não arredar pé. Mas já estamos a falar da Black Friday. Já há anúncios de Natal embrulhados em Setembro. Já há quem marque ceias e troque mensagens sobre o que vai ser este ano. Estamos constantemente a atropelar o presente, como se ele fosse apenas o caminho para o próximo evento. Vivemos em agenda. É como se tivéssemos assimilado o (...)
Quando eu era criança, perguntavam-me o que queria ser quando crescesse. Houve uma fase em que disse astronauta. Outra em que quis ser mãe de sete filhos. E também houve o momento em que considerei seriamente ser patinadora. Mas havia uma resposta que nunca dei. Achava que não era legítima. Quando for grande quero ser leitora. Não quero ser escritora, nem professora, não quero ser editora. Só ler. Ler como se lê um pão quente. Como se bebe água quando se tem sede. Como (...)