Há um momento do dia em que o próprio dia ainda não começou a pedir nada. Nem tarefas, nem respostas, nem pressa. É nesse instante que eu saio, com o cesto de roupa lavada encostado à anca, para um ritual que ninguém inveja, mas que eu não troco por nada. Estender a roupa de manhã cedo, no campo. Um luxo incalculável. E tão subestimado. A maioria das pessoas detesta fazê-lo. Queixa-se do tempo, das molas, do encosto da roupa húmida nos braços. Mas fazem-no dentro de (...)
Há prazeres tão silenciosos, que quase passam despercebidos. Não se insinuam nas vitrinas do quotidiano. E, no entanto, têm o poder de nos devolver a plenitude. Um desses prazeres chama-se: adormecer ao ar livre. Não é preciso muito. O areal, uma espreguiçadeira, uma rede pendurada entre duas árvores, um banco de madeira morna num parque ao fim da tarde. A única exigência é que o céu esteja por perto. Azul ou escuro. Com estrelas ou nuvens, em movimento lento. Depois disso, (...)
Há uma magia discreta nas primeiras horas do dia. Da magia miúda. Silenciosa. Que acontece quando pouca gente está a ver. Basta acordar cedo. Não é apenas a luz mais suave, ainda hesitante. Nem só o cheiro do ar, mais limpo, mais novo. É um grande privilégio ver o mundo a abrir os olhos devagar. É um silêncio que se ouve. Porque, àquela hora, o silêncio não é ausência. É presença. E quase ouvimos o tempo a respirar. Não há motores. Nem vozes. Só os pássaros mais (...)
Sonho muito. Tanto. Nunca sei se é uma maldição, uma bênção ou simplesmente normal. Acordo cansada... mas também fascinada. Porque estive a viver. Estive horas noutra vida — mais fluída, estranha, às vezes tão real. Há pessoas que dormem como pedras. Depois, existem as como eu. Que passam as noites a saltar entre cenários, rostos desconhecidos, diálogos que nunca aconteceram. É quase como se a mente dissesse: o corpo vai descansar, mas eu ainda tenho uns quantos (...)
Chocolate 70% cacau. Aquele que as pessoas fazem uma careta quando o trincam. O doce que deixou de ser doce. Quando, na verdade, o que queríamos mesmo era um quadrado de chocolate de leite, sem dramas. É que vistas bem as coisas, depois dos 40, há poucos luxos que não trazem consequências. Aprendemos que a vida é uma sequência interminável de concessões. O vinho dá ressaca. O bolo vai directo para as ancas. E o café, depois das 16h00, condena-nos a uma noite em branco. Menos (...)
São 46 anos, mais próximos dos 47 do que dos 45. Em Janeiro, inscrevi-me nas aulas de Pilates. Não foi resolução de Ano Novo. Foi mesmo o grito do ipiranga para um corpo cada vez mais adormecido. E tem sido uma agradável surpresa. É que nem capas nem máscaras – o Superpoder vem do nosso corpo. E o Pilates tem sido uma lição de sábios para o pôr a funcionar como nunca. Aos poucos, fui deixando de ser aquele boneco totalmente desarticulado e conquistei força. Uma leveza (...)
Decidi [sem grande margem de manobra] limpar alguns dos ruídos da minha vida. Sentia-me extremamente cansada. Aquele cansaço que não passa com as férias, uma boa noite de sono, ou nos jantares com as amigas. Desde o início do ano que estou num estado [não] disponível. E, se soubesse o que sei hoje, ontem já era tarde. Tudo começou no Verão passado, quando fiz uma viagem grande com a minha família. Por grande, entenda-se distante, longa, na outra ponta do mundo. Entre (...)