Voyeurismo,
o ofício de espreitar

Espreitar deixou de ser um acto furtivo. É uma rotina social. Não é preciso um buraco na parede nem cortinados mal fechados. Basta deslizar o dedo no ecrã. O voyeurismo já não é um desvio. É um exercício quotidiano com selo de normalidade. O curioso é que o condenamos em teoria. É feio admitirmos que gostamos de espreitar. Mas na prática fazemos dele um hábito tão banal quanto beber um café.
Porque espreitamos? A resposta é menos romântica do que gostaríamos. Não é curiosidade inocente. É gestão de comparação. Ao olhar para a vida alheia, fazemos um inventário da nossa. Confirmamos se estamos atrasados. Adiantados. Dentro da média. As redes sociais tornaram-se o metro de fita com que medimos a nossa existência. Espreitamos para saber se estamos a falhar ou a vencer. Perceber se a nossa rotina tem algum interesse perante os highlights editados dos outros. É um mecanismo de regulação social. Estranho, mas orienta.
O que ganhamos com isso? À superfície, entretenimento. O olhar sobre a vida alheia funciona como uma novela improvisada. Sem guião, mas com drama garantido. Por baixo, há um prémio apetitoso. O alívio. Quando vemos alguém tropeçar. A discutir em praça pública. A exibir escolhas duvidosas. Respiramos mais leves. A vida dos outros serve de almofada para a nossa potencial queda. O voyeurismo é um seguro emocional. Ao ver a vulnerabilidade alheia, sentimos que a nossa não é tão grave. A miséria dos outros nunca é só deles.
E como o fazemos? Com profissionalismo. Nunca espreitámos com tanto método e tanta tecnologia a favor. Seguimos pessoas que não conhecemos. Deciframos gestos através de fotografias. Inventamos narrativas a partir de meia legenda. Não nos limitamos a observar. Investigamos. Uma autópsia digital da vida dos outros. A dieta. Os horários. As férias. Os amores. Os fracassos. O voyeur moderno é um detective amador. Mas altamente eficaz. Exerce o ofício sem crachá nem remuneração. Por vício.
O lado mais curioso é que já não espreitamos escondidos. Criámos uma espécie de voyeurismo recíproco. Mostramos partes da nossa vida para sermos espiados. É um contrato tácito. Eu abro a janela, tu espreitas. Tu abres a tua, eu devolvo o gesto. O voyeurismo tornou-se circular. Uma economia de atenção onde todos somos ao mesmo tempo espectadores e exibidos. Não há inocência nisto. Há estratégia. Mostramos o que queremos que seja espreitado. Em troca, reclamamos o direito de observar os outros sem culpa.
E se retirarmos a maquilhagem do fenómeno, fica a nu a contradição. Vivemos a condenar a superficialidade, mas dependemos dela para nos orientarmos. Vivemos a denunciar a invasão de privacidade, mas voluntariamente cedemos a nossa. O voyeurismo não é um acidente moderno. É uma engrenagem da vida contemporânea. Sem ele, perderíamos a comparação. A régua. Parte da narrativa colectiva. Espreitar é a forma mais simplória de nos sentirmos incluídos.
Não se trata de uma perversão escondida. É um hábito legitimado. Para alguns, quase obrigatório. Fingimos que não olhamos, mas a verdade é que ninguém resiste a saber como o vizinho vive. Como o colega educa os filhos. Como o desconhecido organiza o jantar de sábado. O que antes era cochicho, hoje é scroll infinito. A curiosidade ganhou adeptos e deixou de pedir licença.
No fim, talvez seja essa a conclusão. Espreitar não é defeito, é identidade. A diferença é que agora o fazemos às claras. Com a consciência em modo silencioso. Somos todos voyeurs. Não por perversão, mas por necessidade de comparação e pertença. E enquanto houver janelas abertas vamos continuar a olhar. Não porque precisamos de saber dos outros, mas porque precisamos desesperadamente de nos ver através deles.